quarta-feira, 21 de junho de 2023

O duplo sete anos de azar

Quem luta com monstros deve ter cuidado para não se tornar um monstro. E se olhas demoradamente um abismo, o abismo olha para dentro de ti.

Friedrich Nietzsche, aforismo 146 de “Além do bem e do mal”

 

"Nós" (1926), de Ismael Nery (1900-1934)

Encontrava-me no paraíso de minha alcova, em uma escuridão habitual. Na cama deitado, sentia-me envilecido no eterno retorno de minha hierática melancolia, fitando-me, sem de fato ver-me, devido à tenebrosidade do local, em um espelho em frente. Este estendia-se até o fim da parede. Não se espantem com o tamanho, caros leitores e caras leitoras. Não sou nenhum narcisista – ao menos não me considero assim.

A sujidade residencial onde desgraçadamente vivia era deveras pequena, não mais do que um cubículo, um minúsculo paralelepípedo, minha acanhada prisão. O dormitório, então, era do tamanho de uma caixa de fósforos, como aqueles que eu usava para acender meus detestáveis e malcheirosos cigarros. Bastava para mim! Afinal, era-me sozinho e mal remunerado, além de odiar companhias de outros seres humanos intromissores.

Como eu dizia, queridos e ansiosos leitores e leitoras, cá estava eu no escuro de minha câmara e de minha alma, com pensamentos por demais autodestrutivos, observando-me, sem me observar, ao espelho, quando, de repente, vi um movimento estranho, algo a mexer-se nas trevas do quarto. Acendi o abajur e tive um reflexo imediato como o de um vampiro sendo atingido por mortais armas de claridade. Aquilo que se movimentava lentamente não era um estranho a adentrar o quarto. Para a minha completa perplexidade, era a minha própria imagem no espelho.

Não se enganem, leitores e leitoras. Vós direis ser francamente óbvio minha imagem no espelho mexer-se conforme meus próprios movimentos. Todavia, ela se movia de forma contrária. Quando eu movia a mão esquerda, o meu eu no espelho movimentava a mão direita. Ao movimentar a mão direita, o meu eu no espelho movia a mão esquerda. E assim sucessivamente com os outros membros de meu corpo.

Tentei dizer algo. Para meu assombro, a imagem de mim mesmo repetiu o meu dito como um eco, porém com uma voz bastantemente diferente da minha. Enquanto meu tom de voz é baixo e contido, a voz da imagem – ou duplo, como daqui para a frente o denomino – era grave e extrovertida, quase gritada. Foi quando passei a observar com mais cuidado seus braços. Percebi que ambos eram musculosos, enquanto os meus eram raquíticos, débeis. O duplo piscou os olhos para mim e então percebi que os mesmos eram de uma cor esverdeada, ao contrário dos meus olhos castanho-claros.

Estava pasmo, sem ar, cambaleante. Terminei por cair ao chão sem forças, mas não desmaiei. Ao olhar para cima, vi a voz bronca do duplo dizer: “Idiota!”. Foi quando o terror se apossou de minha alma e fez-me sentir os fios de cabelo da espinha se arrepiarem. O duplo, além de ser completamente diferente de minha pessoa, também tinha vida própria?

Levantei-me. Foi quando o duplo estalou seus enormes dedos e disse: “Durma, seu verme rastejante!”. Celeremente caí ao chão frio de minha miserável alcova. Ao acordar, para minha estupefação, caro leitor e cara leitora, o duplo se encontrava fora do espelho. Em sua mão, se encontrava um relógio de pulso. O duplo me hipnotizou com as seguintes palavras: “Vais agora viver dentro do espelho, abjeta criatura dos esgotos. O abismo espectral o chama. Tu o olhaste. Agora suporte as terríveis consequências, humano pavoroso”.

Levantei-me como um morto-vivo, como o fantasma que sempre fui, e dirigi-me ao espelho, adentrando-o. Ao encontrar-me lá dentro, o espelho se espatifou em mil pedaços. Nenhum espanto para quem sempre foi um ser fragmentado e sombrio. O monstro tomou-me o lugar, o abismo engoliu-me.


O Cubas da triste figura, inverno de nossa desesperança de 2023.

quinta-feira, 14 de maio de 2020

Resto

O que esperar do amanhã
se hoje,
agora,
neste momento,
os genocidas
e seu contente descontentamento
não distinguem vida de morte!?...

A vida chacina,

viver é perigoso...
Os fascismos e os fascistas do cotidiano
matam exitosos
enquanto sentimo-nos hesitosos
para sair após o caos.

Restará mundo,

redondo mundo,
após a indigente-demia?
Ou não restarão vidas 
para contar a história
da sangrenta mito-mania?
Esse é o plano
dos ideólogos de uma plana terra,
dos generais e capitães
com suas artilharias de brinquedo
que brincam com as vidas
como crianças perversas com lupas e formigas...

Seguirá o baile tirânico do Príncipe Próspero,

ditoso em ditar uma ditadura
de vidas que matam
e não mais estarão
no redondo mundo?

Choro e desespero...

Engano e desengano...
O palhaço e sua ferradura que ferra...
Povo infecundo...

sexta-feira, 11 de maio de 2018

Ser humano, ser urbano




Carros carros,
caros carros,
vastos carros...
mastodônticos carros.

Para que tantos carros,
baratos e caros carros,
pergunta minha claustrofobia ansiosa.
Porém a prática não pergunta nada.

São infinitos carros.
Mais parecem hordas de baratas do esgoto.
Já as pernas são infinitesimais,
são invisíveis como a natureza.

Carro carro sem fim carro,
se você se chamasse Ricardo,
seria mais uma rima, não um problema.
Carro carro sem fim carro,
mais infinito é o capitalista sistema.

Sigo relutante,
com a memória da arte do mundo,
acreditando na força do poema.

quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Faz-se a face

A quarta parede da vida em cacos,
dispersa em seus vidrados estilhaços,
em resíduos de despedaços.

...e o poeta a jogar suas metas foras
para dentro do poema...

sábado, 10 de junho de 2017

Ser e não ser

Viver é o sem sentido
consentido e concedido
sem fins e inícios
em infinitivo infinito.

Alguns procuram fins lucrativos,
outros o fim sem fim,
muitos a metafísica dos princípios.

Eu sigo errante,
por certa errada direção,
em busca de mim,
das subjetivas erratas em construção,
enxergando que não enxergo o caminho.

Sou faísca de tempo
em sem tamanho universo
que habita o fora e o dentro.

Em constante onisciência,
habito o pretérito de meu ser
ao ser grande e pequeno,
ao estar e não estar aqui, ali e acolá,
apenas a transitar a pé pelo trânsito
do caos a sempre me habituar.

domingo, 9 de abril de 2017

Por aqui

Não estou aqui há muito tempo.
Em verdade, não sei se algum dia já estive...
Aliás, onde é o "aqui"?
Ele existe de fato?

Este aqui...
Esse aqui...
Aquele aqui...

Cá...
Lá...
Acolá...

Estou diluído no universo.
Sou etéreo.
Voando sob o asfalto,
como um anjo torto de asa quebrada,
em minha (in)existência vã.

Sou viajante cósmico.
A viajar, viajar...
A vagar, vagar...

terça-feira, 14 de fevereiro de 2017

Falta


Asas, asas,
vastas asas.
Queria possuir asas e, 
com e como os pássaros,
voar por aí sem destino,
e nessas fugazes fugas,
longe das angústias
e das melancolias,
ir talvez em busca
de certo emplasto Brás Cubas
ou mesmo de um Graal,
sentir oh odor das flores da esperança,
qualquer dose de reconforto
para as dores mundanas...

terça-feira, 20 de dezembro de 2016

Fazes as fezes

 
Igrejas brotarão aos montes do chão,
em constante poluirão...


E o que tu fezes?

Burgueses bradarão eterna reclamarão,
em orais dejetos fascistirão...


E o que tu fezes?

Ruralistas da t(T)erra se aproveitarão...

E o que tu fezes?

Empresários aos pobres neoliberarão...

E o que tu fezes?

Políticos golpistas a ti usurparão...

E o que tu fezes?

quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

Fértil



Os fantasmas se riem de mim,
com escárnio
desse ser fragil,
em um fim sem fim...

As flores que desabrocham...
são regadas pelos fantasmas
e se afogam.

As flores são tímidas,
são desencantadas,
mas estão vivas
dentro do jardim abismal,
no interior dos fundos do ser.

E o fim é apenas o início...

terça-feira, 22 de novembro de 2016

Fractal




Os meus pedaços são rareados
como flores no deserto.

Espalhados, eles estão,
frisados, 
por aí, 
por aqui, 
acolá...

São fragmentos de uma vida, 
fragmentada, 
fragmentária.

São cacos 
de um espelho quebrado,
alquebrado, 
os quais narcisicamente evito.

Frago e flagro 
movimentos no mundo, 
fugidios, 
furtivos, 
cacofônicos e sinestésicos, 
claustrofóbicos e surdos, 
às vezes perfumados, 
outras com mau cheiro. 

Minhas lágrimas e gotas de suor, 
secas como a areia do deserto, 
estão pungidas no chão, 
petrificadas no ar, 
vaporizadas no céu. 
São as chuvas de meu corpo, 
são matérias vertentes 
que vertem e fertilizam 
minhas dores, dores, 
vastas dores... 

Se em pranto entro, 
fecundo as terras do papel 
e um poema brota. 
O pranto planta um poema 
e se suplanta, 
momentaneamente, 
minha melancolia sem fim, 
meio ou início...

O duplo sete anos de azar

Quem luta com monstros deve ter cuidado para não se tornar um monstro. E se olhas demoradamente um abismo, o abismo olha para dentro de ti. ...