Quem luta com monstros deve ter cuidado para não se
tornar um monstro. E se olhas demoradamente um abismo, o abismo olha para
dentro de ti.
Friedrich
Nietzsche, aforismo 146 de “Além do bem e do mal”
"Nós" (1926), de Ismael Nery (1900-1934) |
Encontrava-me
no paraíso de minha alcova, em uma escuridão habitual. Na cama deitado,
sentia-me envilecido no eterno retorno de minha hierática melancolia, fitando-me,
sem de fato ver-me, devido à tenebrosidade do local, em um espelho em frente.
Este estendia-se até o fim da parede. Não se espantem com o tamanho, caros
leitores e caras leitoras. Não sou nenhum narcisista – ao menos não me
considero assim.
A
sujidade residencial onde desgraçadamente vivia era deveras pequena, não mais
do que um cubículo, um minúsculo paralelepípedo, minha acanhada prisão. O
dormitório, então, era do tamanho de uma caixa de fósforos, como aqueles que eu
usava para acender meus detestáveis e malcheirosos cigarros. Bastava para mim!
Afinal, era-me sozinho e mal remunerado, além de odiar companhias de outros
seres humanos intromissores.
Como
eu dizia, queridos e ansiosos leitores e leitoras, cá estava eu no escuro de
minha câmara e de minha alma, com pensamentos por demais autodestrutivos, observando-me,
sem me observar, ao espelho, quando, de repente, vi um movimento estranho, algo
a mexer-se nas trevas do quarto. Acendi o abajur e tive um reflexo imediato
como o de um vampiro sendo atingido por mortais armas de claridade. Aquilo que
se movimentava lentamente não era um estranho a adentrar o quarto. Para a minha
completa perplexidade, era a minha própria imagem no espelho.
Não
se enganem, leitores e leitoras. Vós direis ser francamente óbvio minha imagem
no espelho mexer-se conforme meus próprios movimentos. Todavia, ela se movia de
forma contrária. Quando eu movia a mão esquerda, o meu eu no espelho
movimentava a mão direita. Ao movimentar a mão direita, o meu eu no espelho
movia a mão esquerda. E assim sucessivamente com os outros membros de meu
corpo.
Tentei
dizer algo. Para meu assombro, a imagem de mim mesmo repetiu o meu dito como um
eco, porém com uma voz bastantemente diferente da minha. Enquanto meu tom de
voz é baixo e contido, a voz da imagem – ou duplo, como daqui para a frente o
denomino – era grave e extrovertida, quase gritada. Foi quando passei a
observar com mais cuidado seus braços. Percebi que ambos eram musculosos,
enquanto os meus eram raquíticos, débeis. O duplo piscou os olhos para mim e
então percebi que os mesmos eram de uma cor esverdeada, ao contrário dos meus
olhos castanho-claros.
Estava
pasmo, sem ar, cambaleante. Terminei por cair ao chão sem forças, mas não
desmaiei. Ao olhar para cima, vi a voz bronca do duplo dizer: “Idiota!”. Foi
quando o terror se apossou de minha alma e fez-me sentir os fios de cabelo da
espinha se arrepiarem. O duplo, além de ser completamente diferente de minha
pessoa, também tinha vida própria?
Levantei-me. Foi quando o duplo estalou seus enormes dedos e disse: “Durma, seu verme rastejante!”. Celeremente caí ao chão frio de minha miserável alcova. Ao acordar, para minha estupefação, caro leitor e cara leitora, o duplo se encontrava fora do espelho. Em sua mão, se encontrava um relógio de pulso. O duplo me hipnotizou com as seguintes palavras: “Vais agora viver dentro do espelho, abjeta criatura dos esgotos. O abismo espectral o chama. Tu o olhaste. Agora suporte as terríveis consequências, humano pavoroso”.
Levantei-me como um morto-vivo, como o fantasma que sempre fui, e dirigi-me ao espelho, adentrando-o. Ao encontrar-me lá dentro, o espelho se espatifou em mil pedaços. Nenhum espanto para quem sempre foi um ser fragmentado e sombrio. O monstro tomou-me o lugar, o abismo engoliu-me.
O Cubas da triste figura, inverno de nossa desesperança de 2023.